Com exclusividade
Liguei para o “Recanto da Saudade”, um Lar para idosos em Belo Horizonte, para marcar a visita. Falei com Helena, moça muito simpática, e sua voz tranqüila e amigável fez com que minhas expectativas crescessem rapidamente. O trato foi simples: “A gente só pede para os visitantes trazerem doações. Pode ser um vidro de álcool ou um pacotinho de algodão”, disse a voz do outro lado da linha. Meu coração amoleceu com tanta simplicidade, e na mesma velocidade em que minhas expectativas cresciam, concordei com a proposta.
Quando desliguei o telefone, uma onda de flashes backs atingiu minha mente. Tive uma lembrança bem distante, tão distante que não conseguia lembrar as perguntas básicas: “Quando, onde e por quê?”. Só me via ainda pequenina, na companhia de minha avó, em um asilo bem florido, com vovós e vovôs sorridentes que cantavam alegremente. Aí uma das vovós ficou triste por não ter um microfone pra cantar, e eu em toda minha pequenez e no auge da minha inocência, peguei um galhinho, e mostrando para ela que aquilo daria um belo de um microfone, coloquei em suas mãos já marcadas pelo tempo. Aquele foi o sorriso banguela mais bonito que já vi.
O preparo:
Deixando de lado a subjetividade, fui me preparar para a visita. Foi então que as coisas se tornaram um pouco mais reais. O Artigo 2º do Estatuto do Idoso, em vigor desde o dia 23 de setembro de 2003, diz que “O idoso goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhe, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, para preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade.” Isto transtornou meus pensamentos porque comecei a refletir sobre a cruel realidade do “envelhecer”. Os dados são tristes: segundo a Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia, no Rio de Janeiro, por exemplo, a proporção é de 40 geriatras para 750 mil idosos. Sem contar com os impostos, os cortes de aposentadoria e as burocracias dos planos de saúde que entristecem os idosos de todo o país. “Isto significa que não temos nem direito à saúde, como preconiza o art.15 do Estatuto do Idoso”, afirma a professora Maria de Lourdes Micaldas, de 66 anos, em uma de suas crônicas publicadas em seu site, “Velhos amigos”.
Em um país que está deixando de ser jovem estes contratempos são inadmissíveis. Segundo o Departamento de Psiquiatria e Neurologia da UFMG, as evidências indicam que seremos, em 2020, o 6º país com a maior população de idosos do mundo. Como é possível tantas falhas, tantos preconceitos e tanto despreparo para com o envelhecimento?
Foi partindo destes questionamentos que comecei a ter uma visão mais concreta dos fatos que estava prestes a encarar.
- Fica marcado então para segunda feira, dia 16, pode ser?- me perguntou Helena.
- Pode sim. Às 15 horas, né?
A visita estava confirmada. As idéias corriam livres em meus pensamentos ainda confusos com a abordagem que deveria ser feita. As expectativas? Bom, elas diminuíram consideravelmente.
A visita:
Cheguei ao Recanto da Saudade no horário previsto, com uma sacolinha de farmácia contendo 2 litros de álcool e 4 pacotes de algodão. Helena havia me pedido um ou outro, mas quis impressionar. Na verdade, no meu íntimo eu estava pensando que esta seria uma ótima estratégia para conquistar os funcionários e fazer com que o clima não ficasse tão tenso. A princípio funcionou. Procurei por Helena, confesso ter precisado do carisma daquela moça, mas quem me atendeu foi Suzana, a diretora. Vi então minha estratégia se dissolvendo no ar, como naftalina, um processo lento. “Xavecar” a Suzana não foi fácil, os olhares de desconfiança que lançava sobre mim, me fizeram sentir uma intrusa; como se o gravador fosse uma arma perigosa. Embora eu estivesse com o coração aberto, me senti armada, uma ameaça para aquele universo frágil.
Pedi, timidamente, autorização para ligar o gravador e começar a gravar. As instruções de Suzana foram firmes, fortes, ameaçadoras: “Cuidado para não deixar as vovós cansadas. Não insista nas perguntas. Qualquer fotografia que você tirar tem que passar por mim antes. Você não pode conversar com todas as vovós, somente com aquelas ali...”, apontou para uma mesa no refeitório, onde três vovós jogavam baralho.
Suzana saiu com seus passos firmes. Agora éramos apenas eu, o gravador e as simpáticas velhinhas que jogavam um carteado. Me aproximei mansamente, como quem não quer nada. Perguntei se poderia me assentar com elas. Notei que os olhares desconfiados permaneciam fixos no gravador e mais uma vez me senti “armada”.
Larguei o gravador em cima da mesa e tratei logo de me apresentar, como sinal de rendição: “Boa tarde, sou a Pipa, estudante de jornalismo, vim conversar com vocês”, usei a mansidão de minha voz. Uma tentativa arriscada. Poderia ter perdido o “jogo das conquistas”naquele exato momento. Para minha surpresa um novo jogo me foi proposto. Me convidaram para jogar “Roba-monte” com elas. Aceitei na hora! Sou “fera” nesse jogo e acabei percebendo que para jogar o meu jogo, teria que jogar o delas também.
Deixei que ganhassem algumas partidas. Fui amaciando o meu caminho e era entre uma partida e outra que conseguia fazer algumas perguntas, enquanto durante o jogo fazia a difícil escolha de quem seria a protagonista desta história.
A escolha:
Lá estava eu, sentada com três vovós lindíssimas, cada uma com suas peculiaridades. Vovó Áurea, cheia de classe. Vovó Conceição (mais conhecida por “Amaral”), com seu mau-humor e resmungos hilariantes. Mas o que mais me chamou atenção foi a simpatia da Vovó Terezinha. Um sorriso contagiante, cabelos brancos como a neve, alegria transbordando e as mãos ainda ágeis o suficiente para embaralhar as cartas do baralho. Vovó Terezinha foi a minha escolhida, não só pela simpatia, mas porque as mãos ágeis me fizeram lembrar das mãos daquela velhinha do microfone.
“Estou aqui há quase 10 anos”- começou a falar- “vim por escolha própria. Nunca casei e nem tive filhos. Meus irmãos foram tocando a vida deles, uns casaram, um outro já morreu...”, disse Vó Terezinha, com os olhos cheios de saudade.
- Mas a senhora não se sente sozinha aqui? – perguntei com um nó na garganta.
- De maneira alguma. Cheguei aqui com a certeza de que eles (os funcionários) cuidariam de mim. Não me decepcionei. E as amizades que fiz (olhou para Áurea e para Amaral), são minha família agora. Sozinha eu não me sinto não.
Vovó Terezinha foi me falando sobre a liberdade, sobre as coisas boas da vida, demonstrando um otimismo invejável. E foi com orgulho que assumiu a idade: “Eu tenho 74 anos e estou bem...”, e ainda me confidenciou com a voz um pouco mais baixa, “...bem melhor do que muitas vovós aqui, que estão mais acabadinhas, né?”.
Foi então que entendi o porquê de Suzana ter feito aquela restrição de conversar apenas com estas três vovós. Muitas vovós do Recanto da Saudade foram deixadas por seus familiares por falta de recursos para lidar com os problemas de saúde. O Mal de Alzheimer e as limitações da idade são os fatores mais comuns entre elas, que recebem todo o carinho, atenção e cuidado de uma equipe médica especializada.
Vó Terezinha pegou o gravador que estava sobre a mesa. Comecei a observar, achando os movimentos dela interessantes. Era como se ela estivesse descobrindo algo, mexendo com delicadeza, com um certo receio. “Será que isto custa muito caro?”, me perguntou com um tom sapeca e logo justificou a pergunta dizendo que queria ter um gravador desses, para gravar as coisas engraçadas.
- E o que você acha engraçado? – perguntei.
- A Amaral fala muito palavrão, resmunga o dia inteirinho.
Rimos juntas, porque na mesma hora, Vó Amaral resmungou alguma coisa bem baixinho. Foi neste momento que o gravador deixou de ser uma arma perigosa e acabou virando um objeto de ligação entre eu e Vó Terezinha que já me contava sobre a apresentação de tango que teve no dia anterior, e de como o dançarino era bonito.
O tempo passou rápido com toda aquela descontração. No final do corredor aparecia a Suzana, apontando para o relógio, dizendo que meu tempo tinha se esgotado. Apertei o botão “stop” do meu gravador e despedi das vovós, que a essa altura, já eram minhas avós.
- Volta mais, Pipa, pra gente jogar “Roba-Monte”.
- Volto sim, vó Terezinha. Olha lá que eu vou ganhar de você, hein?!
- Quero ver é ganhar de mim. – Resmungou Vó Amaral com um sorriso no rosto.
Saí de lá com uma certeza: existe um lugar em que a saudade faz parte da gente.